quarta-feira, 11 de abril de 2012

O que ficou pra dizer de nós.

                                  
Todas essas máquinas e tubos atrelados a cada esquina do meu corpo me fazem viver um pouco mais. Em contrapartida, o apático tom verde-sálvia, que banha as paredes do quarto, juntamente à comida horrorosa e cautelosa do local, me convidam festivamente para um coma perdurável. Agora, imagina aí como é viver (irônico dizer “viver” no momento) todo esse drama de cores trágicas, sabores desgostosos e é claro, a adversidade que é a tua ausência. Assim já não me preocupo com o coma, e sim com a morte mesmo. O pouco que minha mente trabalha, é tentando resgatar meu passado-presente-fututo-pra-sempre contigo. Pensando nas minhas últimas palavras, nos meus últimos desejos e toda essa quase besteira que fazem os enfermos terminais. Então eu pediria gentilmente à enfermeira uma dose de álcool, um cigarro, papel e caneta. Quem sabe, assim, você leia minhas palavras, já que se recusa a ouvir as mesmas, assim como todas minhas chamadas pendentes no teu celular.
Não quero soar como mais uma paciente em estado de choque. Mas pelo garrancho da letra mal elaborada, é perceptível o tremor nos meus dedos pálidos e roxos de unhas mal feitas e de cutículas mal tiradas. Mas tanto faz, já passei por coisa bem pior. Eu me refiro ao borrão da carta, não ao meu câncer incurável, certamente. Não quero te contar detalhes do dia em que a gente se conheceu, pois ainda existe um resto de esperança nesse meu ego nocauteado que torce para que você se lembre. Minha razão crê que não, mas pouco importa. O que se leva da vida não é um primeiro aperto de mão ou um sorriso de boas vindas, mas sim o momento em que a gente se sente mais a vontade pra oferecer mais que estranhos apertos de mãos que se desconhecem e principalmente, não somente dar sorrisos, mas também recebê-los de volta. Você lembra? Eu já só me lembro da parte em que você se tornara de casa, e do coração. Meu amigo, meu ombro direito, minha mão esquerda, minhas pernas... Enfim.
Corre agora na cabeça o que você chamava por “meu dia”. Ás uma, chegara efusivo e eufórico com o bolinho velho da padaria comprimido contra o peito, usando o ar para apagar a vela levemente acesa, que se fazia luminosa no breu do meu apartamento, se revezando entre emitir o som das palmas e o carregar desajeitado do troço cereja-carmim. Entre o tédio e a morte daquele dia, já banal pra mim, eu me socorria naquela cena. Não me importava com as futuras rugas que deixariam minha face plissada, ou o fato de morrer ingerindo o bolinho morfético, nem qualquer outra coisa. Tudo que me vinha aos olhos, à mente e ao peito, era unicamente o ato de carinho. “Valeu, vai tomar um banho, tem lasanha no forno e um bom vinho novo, o que eu quero de presente pra hoje é o cessar da minha fome e a tua companhia.” E se tratando dos meus dotes culinários, não era difícil acatar minhas imposições. “Ok, me dá dez minutos, já volto pra ser teu.” E ria manso, com o ar de dever cumprido.
Nas segundas-feiras de tédio, nada mais justo que uma dose de uma série criminal como NCIS. “Pode entrar, tu ta exatamente três minutos atrasado, tempo suficiente pra não entender mais a razão do resto da trama.” “Desculpa, você me falou dessa mania abusiva da tal da tua rinite aparecer vez ou outra, foi aí que eu decidi parar na farmácia da esquina pra comprar um daqueles teus frasquinhos viciantes de conteúdo líquido corrosivo”. E eu disse que o nome não era bem esse. “Obrigada, agora vem e senta aqui que eu te explico o que já aconteceu”. E a gente começava, como se fosse eu a Pauley Perrete e você o Mark Horman, dando nossos palpites amadores, tentando solucionar os casos antes mesmo do fim do episódio. Nós realmente não tínhamos noção alguma de investigação ou balística, e você nunca teve noção do que é ser justo. E eu te aceito, assim, ridículo e boçal. Porque amar é isso aí mesmo, meu bem.

Também teve aquele dia, que nas minhas recordações, ficou marcado como o começo do fim dos nossos dias. Era um show de uma bandinha de nome peculiar, que eu tento desvendar até hoje. Cajun Dance Party, se bem me lembro. Fui eu, você e mais uma meia dúzia de amigos. Você tava isolado, encostado, pressionando a perna dobrada contra um dos apoios da pista principal, bebendo cerveja, com cara de cachorro sem dono. Eu e minha solidariedade fomos direto ao teu encontro. Alguma coisa estranha já invadia o ar naquele momento, mas só com a solidez das tuas palavras eu pude concretizar essa realidade no interior do meu cérebro antes genuíno. Você se apossou das minhas mãos. “Fica aqui comigo”. “Eu já to aqui, não to?”. “Eu quis dizer, fica comigo mesmo”. “Melhor não, meio mundo vai ver e é isso aí, a gente não deve”. Não lembro o epílogo do diálogo túrbido, já só das mãos desatreladas, do eu pra cá e você pra lá. Uns trinta minutos depois você já tava destinado a tecer novos prólogos, mas agora com outra mulher, que não visse nenhum obstáculo óbvio pra chegar a tua boca. Parecia até uma cena de filme programada. Bem na hora que o Daniel Blumberg enfatizava o refrão de “The Hill, The View and The Lights”, tipo num som de tragédia grega, enquanto minha mão direita cedia ao meu copo de bebida uma ida dramática ao chão, eu via vocês ali, sentindo certo alvoroço dentro de mim, desconfiada de que dessa vez, a inquietação não viera proveniente do álcool. Lembro que assim que o beijo acabou ainda ouve um último pedido teu. “Compra lá uma bebida pra mim?” Eu arregalei um dos olhos, franzi a testa, perguntando a mim mesma se isso era comigo. Por fim, eu dei as costas e me mandei.

Você ainda arriscou deixar umas mensagens na minha secretária eletrônica, mas eu não tava afim de papo. Uns três dias depois, no corredor de algum lugar, eu acendi meu cigarro e vi você caminhando atrás de mim. Eu senti, virei e voltei a caminhar pra frente de novo. Você gritava, tentando ganhar minha atenção. “Espera aí, onde é que tu vai?” Eu parei. “O que é que tu quer?” Com uma cara de poucos amigos. “Não entendi nada, tu sumiu do show, eu te liguei, tu sumiu de tudo”. “Fui eu quem não entendi, tu disse que queria ficar comigo”. Você começou a dar um sorriso sem graça, como se a felicidade tivesse deixando os cantos da boca. “Era só brincadeira, eu não tava falando sério”. Eu ri contigo, abaixei a cabeça, traguei o cigarrinho, fiquei séria e te olhei de novo. “É mesmo? Porque não parecia!”. Teu sorriso já sem graça cessou de vez. Eu impeli a fumaça contra tua cara. “Faz o seguinte, da próxima vez tenta fazer não parecer tão real assim, pode ser?” Você não tinha mais nada a dizer. Eu joguei o fim do cigarro nos teus pés e fui embora, mais uma vez. Parece que bem aí as despedidas se tornaram normalidades do nosso dia-a-dia.

Talvez exatamente uma semana depois, numa reuniãozinha na casa de um amigo em comum, você soltou, depois de ingerir alguma bebida alucinógena, que sentia minha falta. Eu só consegui emitir meu próprio silêncio e minhas caras e bocas de quem tava pé da vida! Quando eu fui deixando de ficar sóbria e as pessoas do local se reduziram a metade tava lá eu e você, sentados numa mesa, um de frente pro outro sem trocar palavras e eu te repreendendo apenas com olhares. Parece mesmo que o chegar da noite sempre me deixa mais vulnerável e você, que já me conhece, escolhe as piores horas pra tentar fazer as pazes. “Senta aqui do meu lado”. “Não, senta aqui tu”. “Por favor”. Eu fui lá e sentei. Você me abraçou forte e beijou minha nuca. “Quer saber, eu vou ali naquela salinha olhar pro teto e dar uma checada nas paredes, se tu quiser, vai lá depois, to te esperando”. “Não vou não”. E eu fui, me lembrando dessa mania ridícula de me contrariar e contradizer nas piores das horas.  Era uma bibliotequinha escura que não via limpeza há uns três meses, suponho. Antes que eu termine, eu quero ressaltar que no escuro, onde a gente quase não pode ver nada, é onde geralmente eu consigo ver as coisas mais bonitas acontecerem. “E então, o que foi que tu me chamou aqui?” E você me puxou, enquanto eu podia ouvir de novo o Daniel Blumberg, agora mais invisível e mais doce cantando “The Parachute”, e me beijou, respondendo minha pergunta tola.

Como qualquer amizade, ou a maioria, bem... Como poucas, chegou um momento em que meus neurônios deram nós em si próprios, me dando certo tipo de convulsão, onde eu já não mandava nas minhas próprias ações e eu só conseguia tremer, tentando assimilar o que se passava com nós dois. Não, eu não quero dizer que nossa história virou um drama romântico, porque não é bem assim, acho até que longe disso, porque os nossos laços fraternais, se eu posso assim dizer, ainda estavam tão conectados. E não era amor de homem e mulher. Eram duas crianças brincando de brincar com si próprios. Até certo momento, logicamente. As pessoas crescem e os sentimentos, algumas vezes, também. Eu podia ser tua amiga de ceder uns beijos se alguma vadia te chutasse por um motivo qualquer. Ou tua amiga de se dar por conta do álcool ou por carência própria. Os amigos são pra isso, não? Pra se dar mesmo. Que sacrifício! (Ironia é meu ponto fraco). Risos. Mas você podia mesmo calar essa boca de vez em quando. Tinha tanto te falado dessa tua mania boba de falar coisas que você realmente não sentia. Você era bom em falar, eu era boa em ouvir. Você era muito bom em falar, eu era muito boa em sentir. E ai eu começava a te odiar, e gostar de te odiar... E a gostar de ti de novo.

A gente era bom mesmo em se exibir à pupila dos outros, as quais se arregalavam curiosas parecendo quererem saber: O que ela é? O que é ele? O que eles são? E nessas horas você me dava as mãos, me arrancava de algum jeito um suspiro e enfrentava o fuzilamento desses olhinhos hipócritas do resto desse mundo, dando os ombros, expondo com gosto nossa relação fraternal, amigável, mãe-e-filho, de irmandade, de casal e de tudo que nos cabia ser. E a única culpa que pesava mesmo era o fato de não podermos ser mais. “Olha só, todos tão olhando pra gente como se fossemos, eu e tu grandes pecadores.” E o “foda-se” que você sussurrava no meu ouvido essas horas soava como uma melodia tecida em cetim, suave, bem doce. E era sempre por isso que eu tinha tanto a urgência de te perdoar mesmo nos piores dos teus erros.

E assim a gente foi vivendo nossa vida, você me amando e achando que podia fazer de mim o que quisesse. Ás vezes tua amiga, ás vezes aquela mulher que tu ia beijar e não ligar no dia seguinte sem se preocupar, e me irritava, me irritava muito, porque parecia que não sabia bem o que tu queria ou sabia, mas achou que eu também não ligasse. Mas por favor, e todas minhas ceninhas de ciúme e meus incômodos com essas menininhas que você andava pra lá e pra cá, toda minha raiva desses teus amores por uma mulher perfeita, toda sob medida pra ti? Eu falei mesmo que era chegada a hora em que isso tava começando a doer, por que eu já não via mais respeito nenhum de você comigo e quanto mais eu implorava, mais você torcia meus neurônios me fazendo perguntar porque tanto descaso assim comigo! “É natural que os homens sejam babacas com as mulheres, mas desde quando eu sou uma mulher pra ti? Antes de qualquer coisa, eu sou tua amiga, não?”. A gente ia trilhando um caminho irreversível de discussões e ofensas que não sei bem ao certo se mais no uniu ou se mais nos separou. Mas com certeza foi fundamental pra fazer dessa nossa história desgraçada um pouco mais bonita, por mais contraditório que isso possa parecer.  

A gente não cabia mais no mesmo espaço com nossos egos inflamados e eu percebi que nossa relação tava totalmente arruinada. Sabe a sensação do nunca-vai-ser-como-antes? Pois é, eu perdi essa fé na gente, porque por mais que eu quisesse te perdoar por tudo, era minha obrigação me colocar em primeiro lugar. Nossa distância nunca foi suficiente pra que eu deixasse de sentir tua falta e pensar em ti em anoiteceres bucólicos, esperando os Arctic Monkeys tocarem no meu celular com o visor acusando teu nome, louca pra dizer adeus ao meu orgulho. Mas na verdade, eu acho mesmo que você nunca mais sentiu nada igual assim por mim. E os anoiteceres só foram ficando mais bucólicos ainda. Eu não queria perder a essência da minha vida e sentia que eu precisava cada vez mais te ter por perto. E eu sempre mantinha contato, mas sempre notando a tua eterna distância de reação não reversível. Numa noite minha de bar, tudo veio á tona e eu te liguei, pedindo pra você me encontrar no meu apartamento.

E eu pedi que me dissesse a verdade se o casso fosse da falta de importância ou de interesse, ainda mesmo se fosse, dolorosamente, falta de amor. Eu ouvi um cara falando uma vez numa propagando de “Grey’s Anatomy” que, buscar a verdade não é quer encontrá-la e sim, eu acredito nele. Eu me encontrei desesperada, gritando e soltando farpas. “Se não se importa, não diz que se importa, se não ama, não diz que ama, mesmo que eu implore por isso”. “É isso que tu quer? Ok, eu não amo mais, já amei mesmo, mas não mais”. O nó que residia na minha garganta há tempos se desfez, eu fui sentando devagar, me afastando de ti e indo pra trás, tentando achar a parede mais próxima. Eu levei as mãos no rosto e achei o chão. Eu fiquei ali, chorando. “Não, não era isso que eu queria, mas talvez seja disso que eu preciso”. Isso parece conformidade, mas ali eu ia morrendo assustadoramente. Eu queria perguntar onde foi que eu errei, mas meu corpo não tinha mais nenhuma reação diante da hemorragia de lágrimas que me consumia.

Desde esse dia você se foi definitivamente, sem deixar rastro da tua sombra. Há mais ou menos dois meses, eu desmaiei enquanto lia a sinopse do novo filme do Wood Allen. Lembrei dos teus conselhos e fui fazer uns exames pra esclarecer tudo e esperava assim, ficar aliviada. Na sala de espera, onde a assistente me oferecia um cafezinho, eu roia o resto das unhas com esmalte escarlate, implorando mentalmente pra que você tivesse sentado no meu lado apertando minha mão, me certificando de que tudo ia ficar bem. Eu entrei na sala, sentei e ouvi. Não lembro direito o besteirol anti-nervosismo que o médico disse antes de dar a tacada final. “É câncer. E infelizmente é um quadro irreversível, você tem mais ou menos uns dois meses de vida”. A última vez que me lembro de ter ficado tão destruída foi quando você me matou pela primeira vez. E aí meus dias estavam condenados a pensar no que fazer a respeito, se não só morrer em vão. Eu tentei te ligar pra contar porque, apesar de tudo, do meu orgulho ferido e do meu coração destroçado, eu não queria ninguém pra olhar por último, se não você. Você se manteve incomunicável e eu passei meus últimos dias apenas morrendo, de todas as formas que alguém pôde um dia sonhar em morrer.

Hoje faz uma semana que eu to deitada nessa cama do hospital. Eu decidi que não queria ficar meus últimos dois meses encarando o verde-sálvia da parede desse cômodo monótono. Só que agora foi irrefutável, porque dessa vez, eu sinto que eu vim aqui pra dizer adeus mesmo. Eu fico aqui me debruçando desesperada me questionando que se existisse algum Deus, esse, não me deixaria ir assim e nem agora. Que se pelo menos eu tivesse que ir por algum motivo, que fosse com você segurando minha mão e olhando meus olhos, acompanhando meus últimos suspiros, sofrendo por mim e comigo. Por que pode até ser que eu não merecesse que você me amasse da forma como eu queria. Mas eu merecia tanta raiva? Eu não acho justo. Hoje, a parte boa disso tudo é que minhas mágoas e todas as perguntas sem respostas que você não soube dar morrerão junto comigo e com isso, eu vou ficar descansada, por que tentar entender toda essa tua falta de apego cansa, viu?

Meus últimos convidados vêm se despedir e eu vejo flores, pessoas chorosas e abraços intermináveis, tentando assimilar tudo, como se o mundo tivesse parado e eu tivesse estática, aguardando, até o último minuto e como sempre, a tua figura aparecer repentinamente por aquela porta. Minha pulsação vai ficando fraca enquanto eu passo a mão na cabeça e caem as sobras do que um dia eu pude chamar de cabelo. Eu me preparo, porque eu sinto que é agora. Eu to chateada, com raiva do mundo, da mulher do 328 que reclama de uma gripezinha banal, de todos e de ti. Enquanto meu coração ainda bate pelos últimos segundos, minhas últimas palavras trêmulas na carta só conseguem ser de compaixão. “Eu fui você e por você todos os dias da minha vida. Eu esperei que fosse recíproco e tentei te falar. Você me ignorou e eu julgo isso um erro, ainda mais nessa minha posição de pobre coitada. Eu sempre te perdoei mesmo quando eu não devia e agora, pela última vez, infelizmente, eu também te perdôo”. Me vêm por último um flash de nossas memórias boas e acho que no auge do meu delírio, eu ouço algum coro de música triste e religiosa cantando pros meus ouvidos. E assim, eu fecho meus olhos e meu coração para. Eu acho que aí eu morro. Mas na verdade, eu já tinha morrido a muito tempo. Se existir mesmo essa fantasia de céu, eu vou olhar por ti. Fica bem!

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